SOFRIMENTO ANIMAL. A JURISPRUDÊNCIA DO STF – DA FARRA DO BOI À VAQUEJADA.

Rodrigo Saraceno

1. INTRODUÇÃO

A questão da defesa do meio ambiente e dos direitos dos animais, dentro do contexto da internalização no direito brasileiro da doutrina de proteção ambiental, bem como do conceito de deveres intergeracionais e em relação com o bem estar animal, apresentou considerável evolução dentro do constitucionalismo brasileiro, que vem consolidando uma visão antropocentrista moderada em relação à defesa dos animais. Investiga-se se os posicionamentos mais recentes nas questões que versam sobre sofrimento animal indicam a tendência de aceitação da vedação à crueldade contra animais não só como um dever, mas como um direito de natureza autônoma de titularidade dos animais.

A evolução da fundamentação da vedação à crueldade contra animais pode ser extraída dos julgados do STF em casos paradigmáticos relativos a praticas culturais em colisão com a norma do art. 225, §1º, VII da Constituição Federal.

2. CONTEXTO CONSTITUCIONAL

A norma que veda o sofrimento animal encontra-se consagrada no art. 225, §1º, VII da CF/88, que tem a seguinte redação:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

A redação da norma motiva discussões sobre sua natureza, se instrumental à proteção do meio ambiente ou se dotado de autonomia; e em relação ao seu fundamento, se baseado no direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e afeito à defesa da dignidade da pessoa humana ou, ainda, se se trata de direito autônomo dos animais.

As discussões na corte constitucional se deram especialmente tendo como exames paradigmáticos das manifestações culturais das rinhas de galo, da farra do boi e da vaquejada, examinadas na Adin 1856/RJ, Rex 153531-8/RJ e ADI 4893, respectivamente.

O presente trabalho buscou sintetizar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nas demandas citadas, particularizando, quando possível, o posicionamento de cada um dos julgadores, na medida em que seus posicionamentos estejam acessíveis, enfatizando os votos dos ministros ainda em atuação na corte.

3. DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 153531-8/SC – DA FARRA DO BOI

O processo paradigmático sobre a chamada Farra do Boi foi relatado inicialmente pelo então Ministro Francisco Rezek, no Recurso Extraordinário nº 153531-8/SC, em exame difuso de constitucionalidade, na 2ª Turma do STF.  O Ministro votou no sentido de declarar a incompatibilidade da atividade cultural denominada Farra do Boi, inclusive chegando a negar a qualidade de manifestação cultural ao referido costume:

(…) não tenho como conviver com a tese de que aquilo que se nos defronta é urna manifestação cultural. Bem disse o ilustre advogado da tribuna: manifestações culturais são as práticas existentes em outras partes do País, que também envolvem bois submetidos à fobia do público, mas de pano, de madeira, de “papier machê”, não de seres vivos, dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da República desse gênero de comportamento (ADI nº 153531-8/SC, 1998. p. 400).

O então Ministro Maurício Correa, abrindo divergência, entendeu pela constitucionalidade da Farra do Boi, porquanto a violência na manifestação não se constituiria como regra, mas como exceção, de acordo com a Comissão de Estudos da Farra do Boi formada no Estado de Santa Catarina. O Ministro, em seu voto, prestigiou a noção de que a Farra do Boi teria um caráter identitário da comunidade açoriana local, e que sua repressão teria caráter etnocida, na medida em que a manifestação desse costume, com animais vivos, seria uma exclusividade da comunidade açoriana de Santa Catarina.

Encarar a “Farra do Boi” como contravenção[1], como fenômeno de violência e tortura, ou como algo que deve ser banido, é julgar não a farra em si, mas as populações envolvidas como “atrasadas”, “selvagens”, “canibais”, “ignorantes”, e que por isso também estão sendo banidas de seu direito de preservar suas tradições. Esse processo é que se costuma identificar, em antropologia, como etnocida (1998, p. 409).

Por fim, num sopesamento de princípios[2], defendeu Maurício Correa que a vedação ao tratamento cruel seria norma de aplicação geral afastável pela necessidade de garantir a manifestação cultural, aberta ainda a possibilidade de repressão dos possíveis excessos.

O Ministro Marco Aurélio  defendeu a inconstitucionalidade da Farra do Boi, porquanto não se trataria, no caso, de uma manifestação cultural que merecesse o agasalho da Carta da República, mas de uma prática cuja crueldade seria impar e decorreria das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal.

O Ministro Neri da Silveira tratou a questão atentando para a necessidade de as manifestações culturais estarem em harmonia com os objetivos da República. Defendendo que a cultura pressupõe um desenvolvimento que contribua para a realização da dignidade da pessoa humana e da cidadania e para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Os princípios e valores da Constituição apontariam, em seu entender, no reconhecimento da necessidade de se impedirem as práticas que não só de danificam o meio ambiente, mas, também, as que provoquem a extinção de espécies, bem como as que submetam os animais a crueldade. Diante da necessidade de observar a Constituição para ter a atividade cultural uma proteção constitucional, não seria possível conciliar os procedimentos e o comportamento social constantes da farra do boi.

Note-se que no julgamento da Adin nº 2.514/SC em 29/06/2005 o Supremo Tribunal Federal adotou o mesmo posicionamento já esposado no recurso extraordinário nº 153.531-8/SC.

4. DA ADIN 1856 RJ – DAS RINHAS DE GALO

Na ADI 1856/RJ, relatada pelo Ministro Celso de Mello, O Pleno do STF pela primeira vez enfrentou a questão da inconstitucionalidade de uma manifestação cultural de forma concentrada, no exame da lei fluminense nº 2.895/1998, que autorizava a criação e a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes – regulamentando, assim, as rinhas de galo.

A Lei fluminense nº 2.895/1998 foi editada com o objetivo específico de legitimar a realização de exposições e de competições entre aves não pertencentes à fauna silvestre.

A Adin se baseou no argumento de inconstitucionalidade da regulamentação da chamada briga de galos por sua incompatibilidade com a cláusula constitucional que protege os animais contra a crueldade: com efeito, a norma seria inconstitucional em sua integralidade porquanto todas as suas regras seriam funcionalmente vocacionadas a tornar viável e operacional uma prática que o ordenamento positivo brasileiro considera ilícita e criminosa, nos termos de então novel art. 32 da Lei nº 9.605/1998 – Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos(…).

Em seu voto, o Celso de Melo entendeu que o constituinte objetivou, com a proteção da fauna e com a vedação de práticas que submetam os animais a crueldade, assegurar a efetividade do direito fundamental à preservação da integridade do meio ambiente. Nesse aspecto, a necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameaçassem as formas de vida animais seriam instrumentais, direcionadas à manutenção do meio ambiente. O respeito pela fauna em geral atuaria como condição de subsistência e preservação do meio ambiente em que vivem os próprios seres humanos.  O dever ético-jurídico de não incidir em práticas de crueldade contra animais estaria vinculado ao dever de preservar a fauna que, por sua vez, seria condição para a própria subsistência do gênero humano em um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Na visão de Celso de Mello, estaria se tratando de uma manifestação de um típico direito de terceira geração, incumbindo ao Estado defender o meio ambiente e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, assumindo o argumento da responsabilidade intergeneracionais quanto à proteção desse bem comum a todos que compõem o grupo social. A obrigação de proteger a fauna seria um instrumento de proteção do meio ambiente.

Em relação às rinhas de galo, sustentou o voto condutor, citando estudo de Lília Maria Vidal de Abreu Pinheiro Cadavez (1997, p. 60/61), que na prática os animais são provocados pelo homem, que os coloca na arena para uma luta até a morte de um deles: Os galos são preparados, cortando-lhes cristas e barbelas sem o uso de anestesia. O bico e as esporas são reforçados com aço inoxidável, e a luta não termina enquanto um deles não morrer na rinha.

A briga de galos se caracterizaria necessariamente por atos de crueldade, caracterizada pela insensibilidade que enseja ter indiferença ou até prazer com o sofrimento alheio.

Observa-se na fundamentação de Celso de Mello brevíssima consideração sobre a titularidade dos animais de um direito à manutenção de sua vida, como consequência implícita da vedação à crueldade: o texto constitucional não disse expressamente que os animais têm direito à vida, mas é lógico interpretar que os animais a serem protegidos da crueldade devem estar vivos, e não mortos.

Contudo, após o breve flerte com a concepção do direito do animal a não ser submetido à crueldade, retornou o voto à noção de que a preservação da vida do animal constituiria dever constitucional do Poder Público, impedindo a morte do animal sem uma justificativa explicitada e aceitável.

No voto constam outras atividades que caracterizariam a crueldade nas rinhas de galo, ainda na fase de preparo dos animais:

(…)da Preparação à Rinha – Por volta de um ano o galo já está preparado para a briga e passará por sessenta e nove dias de trato. No trato, o animal é pelinchado – o que significa ter cortadas as penas de seu pescoço, coxas e debaixo das asas –, tem suas barbelas e pálpebras operadas. Iniciou, pois, uma vida de sofrimento, com o treinamento básico. O treinador, segurando o animal com uma mão no papo e outra no rabo, ou então, segurando-o pelas asas, joga-o para cima e deixa-o cair no chão para fortalecer suas pernas. Outro procedimento consiste em puxá-lo pelo rabo, arrastando-o em forma de oito, entre suas pernas separadas. Depois, o galo é suspenso pelo rabo, para que fortaleça suas unhas na areia. Outro exercício consiste em empurrar o animal pelo pescoço, fazendo-o girar em círculo, como um pião. Em seguida, o animal é escovado para desenvolver a musculatura e avivar a cor das penas, é banhado em água fria e colocado ao sol até abrir o bico, de tanto cansaço. Isto é para aumentar a resistência.

O galo passa a vida aprisionado em gaiola pequena, é privado de sua vida sexual normal, só circulando em espaço maior nas épocas de treinamento… Chega a hora do galo ser levado às rinhas. Depois da parelha (escolha dos pares), vem o topo, que é a aposta entre os dois proprietários. São, então, abertas as apostas e as lambujas. Os galos entram no rodo calçados com esporas postiças de metal e bico de prata (o bico de prata serve para machucar mais ou substituir já perdido em luta). A luta dura 1h 15min, com quatro refrescos de 5min. Se o galo é ‘tucado’ (recebe golpe mortal) ou é “meio-tucado” (está nocaute), a platéia histérica aposta lambujas, que são apostas com vantagens para o adversário. Se o galo ficar caído por 1m o juiz autoriza o proprietário a “figurar” o galo (tentar colocá-lo de pé). Se ele conseguir ficar de pé por 1m a briga continua. Se deitar é perdedor. O galo pode ficar de “espavorido” quando leva uma pancada muito dolorosa e abandona a briga. Se a briga durar 1h15m sem um deles cair há empate e topo perde a validade. Faz[em]-se apostas até sobre o refresco. Galo carreirinha é aquele que percorre o rodo correndo até cansar o outro que está correndo atrás dele para depois abatê-lo. Galo canga é aquele que cruza o pescoço dele com o outro, forçando para baixo até que o adversário perca a postura de briga. O galo velhaco é aquele que, no meio da briga, entra por debaixo das pernas do adversário, quando está sendo atacado e depois o pega de emboscada. Tudo isto comprova que as brigas de galos são cruéis e só podem ser apreciadas por indivíduos de personalidade pervertida e sádicos (ADI nº 1856/RJ, 2011, p. 312/313).

No posicionamento relativo à briga de galo, a corte chegou a demonstrar grande resistência em até mesmo aceitar a atividade como de índole cultural, ao condicionar a manifestação cultural a uma atividade que contribua para a realização da dignidade da pessoa humana e da cidadania e para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A afirmação guarda problema de ordem metajurídica, na medida em que uma atividade não precisa ser constitucional para existir, mas serve de fio condutor para afirmar que atividades culturais devem estar de acordo com a Constituição para sejam por ela protegidas. O direito ao exercício dos direitos culturais e ao acesso às fontes da cultura nacional deve restar harmonizado com a vedação ao tratamento cruel previsto no art. 225, §1º, VII, numa conclusão que decorre da interpretação sistemática dos direitos consagrador na CF/88 com os princípios e valores previstos nos arts. 1º e 3º do mesmo diploma constitucional, que definem princípios fundamentais da República. A Constituição, nesse dispositivo, ao proteger as manifestações culturais, delas também exigiu que efetivamente a abstenção de condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, como está no art. 225, §1º, VII.

A decisão se sustentou sobre percepção que já havia sido levantada no julgamento do RE 153.531/SC, de relatoria do Ministro Marco Aurélio de Melo que, conforme citação de Celso de Melo, considerou que:

Se, de um lado (…), a Constituição Federal revela competir ao Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando, incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais – e a Constituição Federal é um grande todo -, de outro lado, no Capítulo VI, sob o título “Do Meio Ambiente’, inciso VII do artigo 225, temos uma proibição, um dever atribuído ao Estado”. (…) é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada “farra do boi”, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. (…).  Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República (2011, p. 312/313).

O Ministro Ayres Brito (2011, p. 324) teceu considerações sobre a inconstitucionalidade em seu aspecto material, porquanto a crueldade infligida a animais estaria em confronto com os objetivos da república, invocando especificamente o disposto no art. 5º, III, da CF, que veda a tortura e o tratamento degradante sem, contudo, associar tal proteção à vida animal de forma finalística, mas sim destinada ao ser humano, vedando a tortura animal em razão do efeito de exemplo, vedando reflexamente o tratamento cruel ao ser humano.

Em fases de debates, o ministro Ricardo Lewandowski (2011. p. 336) igualmente aderiu ao argumento antropocêntrico, associando a preocupação com o tratamento desumano, cruel e degradante que se dá aos animais domésticos com o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que, quando se trata cruelmente ou de forma degradante um animal, se estaria ofendendo o próprio dignidade humana.

A ministra Cármen Lúcia (2011, p. 338), em breve intervenção, sustentou o dever constitucional das comunidades em vedar o tratamento cruel e degradante, adotando a supremacia da Constituição em sua acepção horizontal. O dever do Poder Público de impedir as práticas cruéis se impõe quando a coletividade sozinha não conseguir fazer com que o folclore e a cultura sejam produzidas em benefício da vida e da dignidade. Não caberia ao Estado proibir ou impor às pessoas condutas que dignifiquem, mas à sociedade primariamente, no que chama de constitucionalismo social.

4. DA ADIN Nº 4983/CE – DA VAQUEJADA

A Adin nº 4983/CE teve como objeto a Lei nº 15.299/13 do Estado do Ceará, que assim regulamentou a atividade da vaquejada:

Art. 1º. Fica regulamentada a vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará.

Art. 2º. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo.

§ 1º. Os competidores são julgados na competição pela destreza e perícia, denominados vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar animal.

§ 2º. A competição deve ser realizada em espaço físico apropriado, com dimensões e formato que propiciem segurança aos vaqueiros, animais e ao público em geral.

§ 3º. A pista onde ocorre a competição deve, obrigatoriamente, permanecer isolada por alambrado, não farpado, contendo placas de aviso e sinalização informando os locais apropriados para acomodação do público.

Art. 3º. A vaquejada poderá ser organizada nas modalidades amadora e profissional, mediante inscrição dos vaqueiros em torneio patrocinado por entidade pública ou privada.

Art. 4º. Fica obrigado aos organizadores da vaquejada adotar medidas de proteção à saúde e à integridade física do público, dos vaqueiros e dos animais.

§ 1º. O transporte, o trato, o manejo e a montaria do animal utilizado na vaquejada devem ser feitos de forma adequada para não prejudicar a saúde do mesmo.

§ 2º. Na vaquejada profissional, fica obrigatória a presença de uma equipe de paramédicos de plantão no local durante a realização das provas.

§ 3º. O vaqueiro que, por motivo injustificado, se exceder no trato com o animal, ferindo-o ou maltratando-o de forma intencional, deverá ser excluído da prova.

Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 6º. Revogam-se as disposições em contrário.

O Ministro Marco Aurélio (ADI nº 4983/CE 2015, p.1) relatou a ação direta votando pela incompatibilidade da prática com o art. 225 da Constituição. Especificamente, propôs como ementa que a obrigação do Estado em garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais não prescinde da observância do disposto no art. 225, VII da CF.

Em seu voto, Marco Aurélio indicou laudo técnico que discorre sobre as lesões típicas causadas aos animais submetidos à prática:

Reporta-se a estudo da Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, revelador de lesões e danos irreparáveis sofridos também pelos cavalos utilizados na atividade, considerado percentual relevante de ocorrência de tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica. Afirma, ante os dados empíricos, implicar a vaquejada tratamento cruel e desumano às espécies animais envolvidas (2015, p. 3).

Marco Aurélio (2015, p. 6) rejeitou o argumento de que a disciplina da prática permitiria a sua realização sem ameaça à saúde dos animais, por entender que na forma como a atividade é desenvolvida a crueldade com os bovinos mostra-se necessária. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, o ato de puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos e é da essência da prática, inexistindo a mínima possibilidade de o boi não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento. A crueldade intrínseca à vaquejada não permitiria a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988.

O julgamento se direcionou pela declaração, por maioria, da inconstitucionalidade da norma regulamentadora da vaquejada e, ainda, pela incompatibilidade da própria atividade com o art. 225, VII da Constituição.

6. CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO ATUAL DA DISCUSSÃO SOBRE CRUELDADE ANIMAL.

O exame das ADIs e recursos extraordinários que enfrentaram o tema do sofrimento animal em atividades culturais mostra algum deslocamento do eixo valorativo que informa as decisões sobre sofrimento animal.

Na ADI 1856, referente às rinhas de galo, considerou-se que a vedação de tal prática se deve a um dever de respeito à fauna, ofendido pela submissão dos animais a situações de crueldade. O argumento é utilitarista e coloca o sofrimento animal numa relação de complementaridade com a função ecológica da fauna e a manutenção da existência das espécies.

No contexto da Farra do Boi se coloca o valor da preservação dos animais contra a crueldade em manifestacões culturais como medida educativa que evita a generalização da prática da tortura contra seres humanos.

Nos julgamentos mais recentes sobre as rinhas de galo, na Adin nº 3776/RS, observou-se o posicionamento que indica o destacamento da vedação a atividade cruel em relação ao caráter utilitário – de preservação da fauna:

Na oportunidade, afirmou o Ministro Cézar Peluso ser a postura da Corte “repudiar autorização ou regulamentação de qualquer entretenimento que, sob justificativa de preservar manifestação cultural ou patrimônio genético de raças ditas combatentes, submeta animais a práticas violentas, cruéis ou atrozes, porque contrárias ao teor do art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal (ADI nº 3776/RS 2007, p. 721).

Ao se vedar o tratamento cruel, mesmo colocando em risco o patrimônio genético dos animais envolvidos nas rinhas de galo, se estaria falando da vedação à crueldade como um valor autônomo e até mesmo em conflito com a preservação da fauna, ao menos num aspecto micro – embora se possa perfeitamente argumentar que o risco de extinção dos galos de briga seja, além de uma possibilidade remota, um compromisso de proporcionalidade em relação ao benefício – a construção de uma cultura de respeito à fauna.

No julgamento da Adin nº 4893, Roberto Barroso  utiliza argumentação que presume a vedação à submissão dos animais a tratamento cruel como valor autônomo.

Antes de analisar as questões constitucionais envolvidas no caso, é oportuno abrir um tópico para reflexão acerca das profícuas discussões que têm se desenvolvido no âmbito da ética animal. Nesse domínio, antecipe-se desde já, tem-se evoluído para entender que a vedação da crueldade contra animais, referida no art. 225, § 1º, VII da Constituição, já não se limita à proteção do meio ambiente ou mesmo apenas a preservar a função ecológica das espécies. Em outras palavras: protegem-se os animais contra a crueldade não apenas como uma função da tutela de outros bens jurídicos, mas como um valor autônomo (BARROSO, 2016, p. 9). 

O pano de fundo de suas considerações é a evolução da questão dos direitos animais, representada pelas correntes filosóficas do bem estar animal e dos direitos dos animais, cujas obras representativas são as animal liberation, de Peter Singer (1983) e The Case for Animal Rights, de Tom Regan (1975), respectivamente.

Ao final do seu argumento sobre o tema o Ministro Roberto Barroso flerta com o argumento bioético:

(…)Portanto, enquanto a vertente do bem-estar pode ser vista como um utilitarismo aplicado aos animais, a visão baseada nos direitos é uma extensão aos animais da ideia kantiana de que os seres humanos devem ser tratados como um fim em si mesmos, nunca como um meio (2016, p. 13).

Não é possível, contudo, utilizar esse argumento como fio condutor do voto do ministro, mas apenas como contextualização do estado da discussão sobre violência animal.

7. DA AUSÊNCIA DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS SOBRE A VAQUEJADA, DA ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO PARA QUESTÕES NÃO ESTRUTURALMENTE AMBIENTAIS.

A ADI 4893 teve apenas um amicus curiae habilitado – a ABVAQ – e não contou com audiências públicas sobre o tema. Na manifestação do Ministro Marco Aurélio houve menção e foram adotadas as conclusões de laudos que indicam a existência de sofrimento animal na atividade da vaquejada. No voto do Ministro Roberto Barroso, não constam menções a estudos conclusivos sobre os danos causados pela prática da vaquejada. Contudo, o ministro inova buscando superar a questão com a utilização do princípio da precaução como fundamento para inverter o ônus da prova.

Embora não existam estudos epidemiológicos publicados especificamente sobre a ocorrência de lesões em bois envolvidos em vaquejadas, isso não significa que esses animais não estejam sendo submetidos a crueldade quando suas caudas são torcidas e tracionadas bruscamente pelos vaqueiros, assim como quando são tombados (Barroso, 2016, p. 24).

Por fim, no voto do Ministro Barroso consta proposta de tese a ser consagrada pelo STF, estando ainda pendente de publicação o acórdão condutor, no sentido da impossibilidade de regulamentação da Vaquejada:

(…)manifestações culturais com características de entretenimento que submetem animais a crueldade são incompatíveis com o art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, quando for impossível sua regulamentação de modo suficiente para evitar práticas cruéis, sem que a própria prática seja descaracterizada (2016, p. 30).

A tese acima esposada revela-se em harmonia com o uso do princípio da precaução, na medida em que abre a possibilidade de regulamentação da atividade, condicionada à demonstração de que foi possível evitar as práticas cruéis.

8 . CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Da evolução da jurisprudência sobre o tema, nota-se um nível crescente da intolerância ao tratamento cruel dispensado a animais, caracterizado pelo infligimento de dor física e mental sem uma justificativa utilitária relevante. Os leading cases enfrentados pelo STF se iniciam em atividades sobre as quais o conceito ético negativo já se encontrava bem consolidado – rinhas de galos e farra do boi – por se tratarem de atividades que tinham por consequência normal a morte dos animais envolvidos na prática. A partir da fixação dos citados precedentes, a jurisprudência do STF avançou em relação a atividades onde o sofrimento animal não é tão explícito, na medida em que o resultado normal da atividade não é a morte do animal.

Se observa uma crescente conformação do valor “atividade cultural”, que vai sendo delimitado pelo dever de evitar o sofrimento animal. Com efeito, é visível na jurisprudência da corte suprema a diferenciação entre atividades em que a violência é meramente metafórica, com aquela onde o alvo do sofrimento é o animal vivo. Exemplificativamente, na discussão relativa à Farra do Boi, chama atenção a diferenciação entre a prática de algumas comunidades, consistente em ser perseguido e destruir um animal de papel maché, com aquela observada pela comunidade açoreana de Santa Catarina, em que se utiliza um animal vivo. Ambas as atividades denominadas como farra do boi.

A justificativa bioética, que eleva a ausência do sofrimento animal a direito, não tem menções relevantes nos votos, em que pese manifestações isoladas de base moral, como no caso do então Ministro Ayres Brito. A linha de justificação utilizada pelo STF é do gênero antropocêntrica, com manifestações no sentido de sua espécie moderada, vale dizer: o meio ambiente é meio de realização da dignidade humana, sendo o dever de sua preservação decorrente da responsabilidade intergeracional. A vedação a atos de crueldade contra animais derivaria do dever ético de retirar dos costumes atividades que desvalorizam a fauna e estimulam comportamentos que glorifiquem a violência, em razão do efeito reflexo de estímulo de atividades violentas contra seres humanos.

Considerações isoladas de natureza bioética são também levantadas pelo Ministro Roberto Barroso, mas ainda assim de maneira a não fundamentar os seus votos na questão do sofrimento animal.

Dessa forma, pode-se concluir que o consenso doutrinário atual, no sentido de ser a visão antropocentrista moderada o vetor interpretativo dominante do valor preservação meio ambiente, é confirmado pelas decisões mais atuais sobre o tema na jurisprudência do STF.

9. REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da ilva da 5ª edição alemã. 2ª Edição. Malheiros: São Paulo, 2012

BARROSO, Luis Roberto – voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983/CE http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/5/art20160531-09.pdf , 2016, acessado em 28/10/2016

BRASIL. Supremo Tribunal Federal.  Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3776-5/RS. DJ 29/06/2007. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc TP=AC&docID=469712

_________. Supremo Tribunal Federal.  Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1856/RJ. DJE nº 198, de 14/10/2011.   http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628634, acessado em 28/10/2016

_________. Supremo Tribunal Federal.  Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983/CE. DJ 12/08/2015. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4983re lator.pdf , acessado em 28/10/2016

_________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 153.531-8, DJ 13.03.1998. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID =211500 , acessado em 28/03/2017.

CADAVEZ, Lília Maria Vidal De Abreu Pinheiro. Crueldade Contra os Animais: Uma Leitura Transdisciplinar à Luz do Sistema Jurídico Brasileiro. Revista Direito e Justiça, vol. 34, nº 1, p. 113/115, item n. 3.3.1, jan./jun., 2008, ediPUCRS).

MELO, Marco Aurélio – Voto Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983/CE,  disponível  em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4983 relator.pdf , acessado em 28/03/2017.


[1] A  prática de crueldade contra animais era tipificada apenas como contravenção até o advento da Lei nº 9.605/1998

[2] O sopesamento é uma manifestação do princípio da concordância prática, que viabiliza a criação de uma regra de decisão diferenciada (norma do caso concreto) bem como a solução de conflito entre princípios, que não se resolvem pela regra do tudo ou nada e sim através de um processo de otimização (ALEXY, 2012, p. 327)

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